Pense rápido: de quantos quilombos você já ouviu falar em Goiás? Muitos vão pensar: nenhum; outros vão responder: os Kalunga, claro, mas existem outros? Atualmente, Goiás possui 58 comunidades quilombolas certificadas em nível federal pela Fundação Cultural Palmares. O desconhecimento geral da população sobre a existência desses povos tradicionais é apenas a ponta de um grande iceberg de invisibilidade social e racismo.
“O problema é o racismo institucional, quando algum órgão ou instituição do poder público não reconhece nossa existência. Nem mesmo legalmente, mesmo organizado através de CNPJ e com certificação”, explica Lucilene Santos Kalunga, líder da Associação Quilombo Kalunga. “A pessoa está provando que ela existe, com documentação, e ainda tem que ouvir de quem está ali para garantir os seus direitos que ela não existe”, continua.
“Isso acontece porque é um público com quem ninguém se importa e que está sendo lembrado agora porque está indo atrás dos seus direitos e isto incomoda algumas esferas sociais e também do poder. Vemos muito essa falta de conhecimento local. Nos próprios municípios há um estranhamento.”
Tais comunidades estão em toda parte: em Aparecida de Goiânia, que celebra 99 anos de fundação, existe o quilombo urbano Jardim Cascata. E o município não está sozinho: comunidades quilombolas estão presentes não apenas nas antigas cidades do ciclo do ouro, mas em diversas outras localidades centenárias do estado, como Cidade de Goiás, Pirenópolis, Pilar de Goiás, Posse, Alto Paraíso, Minaçu, Uruaçu, entre tantas outras. A maior parte está em territórios grandes e rurais.
O mais conhecido é o Kalunga. A ocupação existe há 300 anos. Trata-se do maior território quilombola do Brasil, ocupando uma grande extensão da Chapada dos Veadeiros, assim como as cidades de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás. Foco de diversos estudos científicos nas décadas de 1970 e 1980, a comunidade agora é conhecida nacionalmente pelo artesanato e pelo ecoturismo na Chapada.
Ainda assim, o povo local enfrenta seus problemas, sendo o principal deles similar ao dos demais: demarcação e titulação das terras. Praticamente a metade do território Kalunga ainda não está no nome da comunidade.
“Infelizmente, a principal questão ainda é a busca pelo território, porque nós existimos, temos a certificação legal para termos direito a alguns benefícios e programas do governo. Mas para ter o título da terra é preciso de uma titulação, a indenização de quem está no território para sair, e a comunidade entrar, além do título definitivo daquela terra onde você habita ou onde seus ancestrais habitaram”, explica Lucilene. “Enquanto não tiver a titulação desse território, não temos como falar ‘nós existimos e isso aqui é nosso’”, completa.
A maior parte das comunidades, por ser rural ou periférica, também luta pelo direito às políticas que todo cidadão tem direito: saúde, educação e saneamento básico.
Embora não haja um conflito violento no campo há bastante tempo, existem outras formas de pressionar pela terra. Lucilene menciona o caso do quilombo Mesquita, em Cidade Ocidental, que sofre com a especulação imobiliária por estar tão próximo de Brasília. “É o que chamamos de racismo ambiental. As pessoas pobres são empurradas de uma região e quem tem mais dinheiro vai adquirindo terrenos e ocupando essa área”, conta a líder da Associação Quilombo Kalunga.
Caiapônia
Um dos lugares em Goiás que tem sofrido com essa invisibilidade social em meio à crise causada pela pandemia é a comunidade do quilombo Cristininha, em Caiapônia, que tem enfrentado dificuldades para vacinar seu povo contra a covid-19.
A Associação Quilombo Cristininha é uma das comunidades certificadas recentemente pela Fundação Cultural Palmares, em 2018. A Associação só foi estruturada e colocada de pé no ano passado.
A comunidade acionou o Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de Goiás para obter auxílio jurídico nessa questão da vacina. O desentendimento se deu quando os quilombolas procuraram o poder público municipal atrás da vacinação contra a covid-19 para serem incluídos no grupo prioritário.
Segundo relatos da presidente da Associação, Edissonia Benedita Costa, e a secretária da Associação, Sabrina Costa, o titular da Saúde de Caiapônia, João Bosco Carneiro, teria “debochado” das duas e ainda as levado à promotora do Ministério Público na cidade por não aceitar a autodeclaração apresentada pelo quilombo, fazendo as duas “assinarem um termo de responsabilidade pela lista de membros que deviam ser vacinados”.
“Sofremos racismo de todo lado. Colocam dificuldade de todo jeito”, desabafa Edissonia. “A gente se sente muito humilhada. É ruim, né? Estamos lutando pelo povo da gente, que é muito sofrido.”
Segundo Sabrina Costa, o secretário teria dito que “em Caiapônia não existiu quilombos, não tem quilombolas”, desconfiaram da documentação e criticaram o fato do quilombo não ter buscado autoridades locais antes de ir para a esfera federal, que é a Fundação Palmares.
O próprio desconhecimento da pasta sobre a existência da comunidade quilombola quanto sobre o trâmite para a certificação revela como funciona a profunda a ignorância e a invisibilidade geral em relação ao assunto.
Conforme Sabrina explica, não cabe a nenhuma autoridade municipal reconhecer ou não um quilombo: o trâmite é exatamente o que foi feito, em que a comunidade é procurada pela Fundação Palmares (e não o contrário) e que, a partir da investigação de historiadores, antropólogos e outros especialistas, determina-se a legitimidade e ancestralidade daquela comunidade.
A partir da certificação em nível federal da Fundação Palmares que os quilombos podem dar entrada a uma série de benefícios nas esferas estadual e municipal. Sendo ela, conforme destaca Sabrina, nada foi feito fora dos conformes.
Para Sabrina, dói muito ter sua existência e ancestralidade questionada tendo em mãos a documentação que prova exatamente isso. Pelo levantamento, a ocupação da região pela escrava Cristininha e seus irmãos é mais antiga do que a emancipação e fundação da cidade. “Não é uma certificação tirada do nada”, pontua.
“Não é lenda, é a nossa história”
Salomão Rodrigues da Silva Neto, defensor público e colaborador do Núcleo Especializado de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de Goiás, afirmou ao jornal A Redação que ofícios foram enviados aos municípios nos quais foram relatadas dificuldades para a vacinação, inclusive Caiapônia.
“Recebemos algumas respostas, inclusive do Estado. Há uma discrepância, porém, entre as pessoas que foram vacinadas e o número de pessoas autodeclaradas quilombolas conforme as associações. O que foi efetivamente vacinado é menor do que as comunidades declararam”, relata. “Depois dessa divergência, está havendo por parte do Estado uma abertura de nova estimativa conforme os munícipios repassarem qual é a população realmente estimada.”
Salomão afirma que “por toda a questão do racismo estrutural, por serem pessoas descendentes de uma população escravizada, toda a invisibilidade dessa estrutura social foi demonstrada nesse período de pandemia, inclusive na vacinação”. Em relação à cidade de Caiapônia, ele assegura que “dependendo do que acontecer, a Defensoria vai tomar as medidas judiciais necessárias”.
O defensor público relata que a relação entre a Defensoria e as comunidades quilombolas tem se estreitado a partir de uma série de demandas “de toda natureza de efetivação de direitos civis e sociais”. “Essas comunidades ainda sofrem em busca do próprio reconhecimento, seja por parte da sociedade, seja pelo poder público. A principal reinvindicação é a questão da própria regularização dos territórios, algo previsto na Constituição”, afirma Lucilene.
Salomão ressalta que neste 13 de maio é importante se questionar “o que foi o 13 de maio? Essa população foi deixada à mercê e até hoje luta pela equidade racial de direitos”.
O secretário municipal de Saúde de Caiapônia, João Bosco Carneiro, declarou que só está aguardando a chegada de mais doses de vacina para que a imunização seja realizada. Negou que tenha debochado da Associação, mas admitiu que não aceitou a autodeclaração “para não correr o risco de ser responsabilizado” e, por isso, foi junto ao Ministério Público para ter uma lista oficial de pessoas.
Admitiu que teve um desentendimento com a presidente da Associação, mas disse ter um bom relacionamento com a secretária Sabrina e com os demais membros do grupo. O secretário também disse que não sabia da existência do quilombo.
Carneiro também confirmou ter questionado a demora no registro do quilombo localmente e acrescentou que interpelou o trâmite iniciado na esfera federal.
Através de nota, o Ministério Público do Estado de Goiás, por meio da Promotoria de Justiça de Caiapônia, esclareceu que promoveu reunião no final de abril com representantes da Associação Quilombola Cristininha e o secretário municipal de Saúde, João Bosco Carneiro Vilela, para ouvir demanda da entidade, que pleiteava que seus membros constassem como prioritários para vacinação contra a covid-19.
“O parecer do MP-GO sobre a questão foi pela necessidade de inclusão das 85 pessoas constantes em lista fornecida pela presidente da Associação, para a vacinação prioritária. Ao acolher o parecer do MP, a Secretaria Municipal garantiu que fará a imunização do grupo assim que concluídos os protocolos sanitários para a destinação da vacina”, diz a nota.
Agora, Sabrina conta que a Associação segue fazendo um trabalho amplo de levantamento para encontrar os descendentes do quilombo e reconstruir sua história. “Devemos ser cerca de 300 pessoas, mas estamos montando as árvores genealógicas. Muitos ainda não sabem que são quilombolas. Conforme fazemos o contato, vamos reconstruindo”, relata. “Circula história entre o pessoal da cidade que fala que é lenda dos pretos. Mas não é lenda. É a nossa história. É a história da nossa família.”